O Brasil alcançou algo extraordinário. O país mantém 11.000 portais de transparência governamental – um para quase cada órgão público –, mas a maioria dos cidadãos os considera incompreensíveis. É como dar uma calculadora a todos que não sabem fazer contas. Esse paradoxo, explorado no Fórum Brasil Reino Unido, nos dias 14 e 15 de junho de 2025, ilumina um desafio enfrentado pelas democracias em todo o mundo: a inteligência artificial pode finalmente tornar os dados de gastos públicos acessíveis aos cidadãos?
Após grandes escândalos de corrupção, o Brasil determinou em 2009 que todos os 5.570 municípios publicassem online dados de gastos em tempo real. A escala é impressionante: de São Paulo, com orçamentos que rivalizam com os de pequenas nações, a vilarejos remotos na Amazônia, cada um precisa manter sites financeiros sofisticados. Segundo a ATRICON (Associação Nacional dos Tribunais de Contas), isso resultou em mais de 11.000 portais distintos.
Este desafio se estende globalmente. As contas do Panchayat da Índia, os dados de gastos dos conselhos do Reino Unido e os orçamentos estaduais da Nigéria enfrentam problemas semelhantes. Os governos adotaram a transparência como prática padrão, mas os cidadãos permanecem distantes das finanças públicas.
O argumento econômico a favor da transparência está bem estabelecido. A análise de 38 estudos do Banco Mundial confirma que a abertura reduz a corrupção e os custos de empréstimos, ao mesmo tempo que melhora os serviços públicos. Experiências sul-coreanas demonstraram que a transparência orçamentária reduziu o desperdício em 23%. Municípios brasileiros com orçamento participativo tiveram aumento de 16% na arrecadação tributária e queda de 18% na mortalidade infantil.
No entanto, transparência sem compreensão pouco adianta. A lacuna entre a disponibilidade de dados e a compreensão dos cidadãos continua enorme em todas as democracias.
A inteligência artificial poderia preencher essa lacuna? O piloto do TransparencIA, desenvolvido em colaboração entre a SuperDash Software e a agência de transparência do Espírito Santo, explorou essa possibilidade. O sistema foi projetado para implantação no WhatsApp – essencial no Brasil, onde a penetração do WhatsApp supera em muito o uso de e-mail.
Os pesquisadores realizaram testes controlados para avaliar o sistema de prova de conceito, consultando sistematicamente a capacidade do GPT-3.5 de interpretar perguntas dos cidadãos e recuperar dados fiscais precisos. A metodologia envolveu revisão da literatura acadêmica seguida de testes de precisão em vários tipos de consulta e níveis de complexidade.
A economia evoluiu consideravelmente. O projeto piloto de 2023 previa custos de US$ 2.000 mensais para atender 20.000 usuários. Os modelos atuais oferecem desempenho superior a custos mais baixos, enquanto alternativas de código aberto aumentam as possibilidades de soberania de dados – crucial para aplicações governamentais.
Os resultados foram preocupantes. O piloto alcançou 75% de precisão – aceitável para recomendações ao consumidor, mas problemático para as finanças públicas. Mesmo que os modelos atuais atinjam 95% de precisão, ainda restam dúvidas: qual a taxa de erro aceitável para dados governamentais? Quem é o responsável quando a IA relata gastos incorretamente?
Mais fundamentalmente, apenas 22% dos portais estaduais brasileiros mantêm dados consistentes e confiáveis. Análises sofisticadas não compensam a baixa qualidade dos dados – um desafio que vai de Estocolmo a São Paulo.
Barreiras institucionais agravam os desafios técnicos. Servidores públicos expressam preocupações com a demissão. Políticos acostumados à transparência seletiva resistem à abertura abrangente. Em todo o sistema federal brasileiro, esses obstáculos se multiplicam por meio de milhares de entidades independentes, cada uma protegendo práticas estabelecidas.
A tensão central continua sendo política, e não técnica. A transparência atende a diferentes públicos de forma diferente: reformadores buscam responsabilização, políticos garantem o cumprimento das normas, burocratas minimizam riscos. A tecnologia não consegue resolver esses conflitos fundamentais.
A abordagem ponderada do Brasil oferece orientações valiosas. Em vez de apressar a implementação, as autoridades recomendam uma implementação em fases: validação interna por meio de testes rigorosos de precisão, testes limitados com estruturas inovadoras de aquisição e, em seguida, implementação em escala com estruturas claras de responsabilização.
Em todo o caso, a proteção de dados e a transparência algorítmica permanecem inegociáveis. Aplicações democráticas exigem padrões mais elevados do que as comerciais – quando a IA relata incorretamente os gastos do governo, a confiança pública se deteriora.
A colaboração internacional entre especialistas brasileiros em transparência e tecnólogos indianos sugere possibilidades de cooperação Sul-Sul. No entanto, o sucesso exige mais do que soluções técnicas. Infraestrutura de dados de qualidade, capacidade institucional e compromisso político sustentado são igualmente essenciais.
À medida que governos em todo o mundo exploram a implantação da IA, a experiência brasileira oferece insights oportunos. A infraestrutura de dados deve preceder a implementação da IA. A complexidade federal multiplica todos os desafios – as soluções devem acomodar vastas disparidades de capacidade. A mudança institucional avança lentamente. A aquisição de tecnologia ocorre rapidamente; transformar a cultura burocrática exige um esforço contínuo.
O potencial continua a ser convincente. Dados acessíveis sobre finanças públicas podem transformar a participação democrática, expor a corrupção e melhorar a prestação de serviços. No entanto, para isso, é necessário governar a IA para servir a propósitos democráticos, e não apenas à eficiência.
Para formuladores de políticas em todo o mundo, a trajetória do Brasil oferece cautela e inspiração. Experimentação cuidadosa, avaliação rigorosa e paciência se mostram mais valiosas do que entusiasmo tecnológico. Em uma era de declínio da confiança pública, tornar o governo genuinamente compreensível para os cidadãos representa um dos desafios mais urgentes da democracia.
A questão não é se a IA consegue decodificar os gastos do governo – mas sim se as democracias conseguem aceitar que a capacidade tecnológica sem vontade política não leva a nada. O experimento brasileiro revela uma verdade incômoda: as barreiras à transparência não são primariamente técnicas ou mesmo educacionais. Elas estão inseridas em instituições que se beneficiam da complexidade, em sistemas federais que fragmentam a responsabilização e na lacuna entre a conformidade e a genuína abertura. Talvez a verdadeira inovação não seja ensinar as máquinas a ler orçamentos, mas criar incentivos para que os governos queiram que os cidadãos os entendam. Até lá, esses 11.000 portais permanecem monumentos à promessa da transparência – e seus limites.
Esta análise baseia-se na pesquisa apresentada no Brazil Forum UK, em junho de 2025. O resumo de política do autor está disponível no site do BSG .
Eduardo Araujo, ex-aluno do MPP e servidor público de carreira da Secretaria da Fazenda do Estado do Espírito Santo.